Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós. Perdida e achada na capital paulista. Entusiasta da escrita e pesquisadora. Publicou Revoada do dragão (Editora Patuá) em 2021, e Voragem (Editora Folheando) em 2022.
“Then let me start again,” I cried,
“please let me start again,
I want a face that’s fair this time,
I want a spirit that is calm.”
Leonard Cohen
A experiência do luto tem sido cada vez mais retratada em textos e contextos artísticos/literários, ora de maneira pouco esperançosa, ora de modo otimista. O luto é um processo lento que culmina em uma dor intensa por vezes silenciosa e sem um final possível. Há vestígios que parecem jamais se dissipar, há também uma aura de revelação em tentativas desesperadas de superar e seguir caminhando. São processos bastante subjetivos que reinventam espaços e “certezas”, e parece que ao tentar expor, explicar com palavras esse sentimento tão humano e ao mesmo tempo completamente desconhecido, nós mergulhamos numa subjetividade que não dá conta de dizer, de se fazer clara.
Pensar o luto a partir das contribuições da psicanálise freudiana é o que me ocorreu desde que li Doce Amanhã e assisti All of Us Strangers. Ainda estou nadando no raso, mas a profundeza se avizinha e daqui a pouco meus pés não conseguirão tocar o chão. Pergunto na tentativa de ir um pouco mais adiante e poder gerar outros questionamentos meus e de quem me lê: qual será a medida da dor? qual a duração do luto? como ressignificar a ausência e ultrapassar (sem garantias, claro) o delírio gerado pela falta? Certamente são perguntas difíceis, com respostas longas e complexas.
Não sou uma especialista no tema, sou apenas uma leitora/espectadora curiosa que deseja companhia — ainda que invisível e distante — para atravessar essa estrada longa feita de escuro. A perda é uma experiência compartilhada pelos seres viventes, mas é o modo como cada ser lida que torna essa experiência tão subjetiva, enigmática. Há, nos discursos ficcionais da literatura e do cinema, uma exposição excessiva do luto e seus processos, suas linguagens e seus silêncios.
O que sempre me assombra são as justificativas e os discursos prontos observados a partir do comportamento do outro: por que oferecemos os pêsames, lamentamos as perdas que não são nossas? Por que repetimos em gesto mecânico que a vida continua, que precisa continuar? São essas questões que povoam o meu íntimo — incompreensíveis —, e que demonstram, talvez, uma certa insensibilidade minha e de quem por algum motivo me dirige o lamento.
As reflexões que proponho neste espaço são frutos das minhas inquietações enquanto leitora e cidadã do mundo que conta com muitas perdas recentes, feridas abertas, com um fluxo de sangue que não pode ser freado e segue escorrendo para lugar nenhum: dor, delírio e solidão. Embalada pelos versos sonoros de Leonard Cohen, na epígrafe, perseguirei o mabui — na cultura japonesa é uma espécie de alma, espírito, energia em fluxo que movimenta a margem entre o aquém e o além mundo — meu e das personagens aqui convocadas.
… uma folha de papel em branco suspensa no vazio.
Li com espanto e admiração a obra Doce Amanhã, da autora japonesa Banana Yoshimoto, publicada no Brasil pela Estação Liberdade em novembro de 2023, com tradução de Jeferson José Teixeira, e me vi absolutamente imersa e envolvida na experiência da protagonista Sayo que passa por uma “quase morte” quando sofre um acidente de carro junto com seu companheiro que não sobrevive ao choque.
Doce amanhã, como a própria autora nos deixa saber no posfácio da obra, foi o modo encontrado por ela para lidar com a tragédia de março de 2011, quando um terremoto atingiu alguns pontos do Japão e causou enorme destruição, especialmente na região de Fukushima.
Yoshimoto escreveu seu romance a partir do luto e da superação vivenciados pela protagonista que não diz respeito diretamente ao ocorrido na realidade, mas que oferece uma visão mais ampla e otimista, uma espécie de consolo para quem perdeu entes queridos, já que este é o mote da narrativa: uma jovem mulher que sofreu um acidente de carro e sobreviveu após meses internada, porém com muitas sequelas físicas e a dor da perda do seu namorado que conduzia o veículo e morreu instantaneamente. Sayo é esta folha em branco suspensa no vazio.
Aqui busco misturar linguagens para tentar alcançar algum sentido, a partir de duas perspectivas distintas tanto em abordagem discursiva, como nas ações das personagens dentro das tramas. Convoco para este espaço de impressões afetivas, o filme britânico de Andrew Haigh — adaptado do romance Strangers, do japonês Taichi Yamada publicado em 1987 — que aborda o luto, o amor e a solidão.
All of Us Strangers (2023) apresenta um cenário escurecido e desolador em tons quase sempre azuis seguidos de luzes perturbadoras que cegam o espectador, é preciso estar atento para não perder os diálogos, as memórias e as motivações de Adam — o protagonista. Nesta história, estamos diante da materialização da solidão — dentro da vida de um escritor órfão —, precisamente, um roteirista com bloqueio criativo vivendo dias monótonos em seu apartamento no subúrbio londrino. E o que isto poderia ter em comum com a narrativa de Banana Yoshimoto que soa tantas vezes otimista? Ambas tratam da morte e da perda dos sentidos e dos afetos sob o olhar de quem permanece, a partir da reconstrução das memórias e de projeções de como seria “se”.
Quando Sigmund Freud publica o ensaio Luto e Melancolia, em 1917 (1915), e distingue estas duas categorias a partir da ideia de que no luto é a morte que caracteriza e gera o sofrimento e a perda das referências, e, no caso da melancolia, nem sempre há este “desligamento” definitivo, podemos pensar partindo destas contribuições para navegar pelos textos do livro e do filme.
O luto diz respeito a um estado emocional gerado pela perda de alguém ou de algo a quem se dedica afeição e não necessariamente é uma questão patológica; a melancolia, por outro lado, é o prolongamento deste sofrimento que pode significar a inaptidão de se envolver, o desânimo em relação ao mundo e ao outro, uma inclinação à autopunição e um “rebaixamento” da autoestima que pode configurar um processo patológico.
Partindo das diferenças explicitadas no texto de Freud, é possível pensar a estrutura das duas narrativas aqui cotejadas, já que na obra literária há todo um caminho percorrido que atinge o ponto de repouso e recomeça partindo de outras possibilidades, são novos inícios que parecem assentados na “realidade” e dentro das possibilidades “materiais”.
Quando Sayo deixa o hospital e volta a morar com os pais, ela tem que lidar com tudo o que ficou, com as coisas e a família de Yoichi — o namorado morto. A protagonista se mantém presa ao fluxo da rotina de antes do acidente, é como se a qualquer momento ela fosse despertar desse “sonho” e sua vida voltaria ao habitual, mas com o correr dos acontecimentos o cotidiano parado e solitário desta personagem ganha novos contornos, novos significados.
A partir do choque e da perda dos sentidos, Sayo é visitada por seu cachorro da infância e seu avô — morto há muito tempo, é ele quem comunica à protagonista sobre a morte do namorado. Quando acorda no quarto de hospital, descobre que o avô estava certo e somente ela sobrevivera ao acidente. Sayo começa a ter visões de cores e pessoas “semitransparentes” — os espíritos de gente desconhecida que ela consegue ver mesmo estando consciente, mas nunca fala com eles, pois não há um canal de comunicação possível e a interação é nula. Dois mundos distintos existindo simultaneamente sem grandes interferências entre eles.
No filme, Adam é o escritor solitário, órfão desde os 12 anos. No presente, com mais de 40 anos, vive em seu apartamento num andar elevado, apartado do mundo, sem amigos ou amantes —até conhecer Harry, o vizinho misterioso do sexto andar. Fora do convívio social, este personagem busca dar algum sentido para sua existência e forja afetos para não sucumbir ao vazio.
Se por um lado Sayo compreende que não é possível esperar que a morte reestabeleça vínculos e que a única coisa permanente é o afeto compartilhado enquanto estamos vivos; Adam não consegue lidar com suas perdas e busca desesperadamente refazer o tempo perdido, projetando seus desejos num convívio impossível com os pais mortos.
Os espíritos ou fantasmas são partes importantes nos dois cenários narrativos, no livro funcionam como um pano de fundo e transitam silenciosamente ao lado da protagonista; no filme são personagens centrais que interagem e modificam a paisagem redirecionando a história por espaços improváveis. Enquanto Sayo está consciente das impossibilidades e de suas limitações, já que ela permanece viva e segue em frente apesar do vazio; Adam flerta o tempo todo com a loucura engendrada pela solidão dos seus dias e vive dentro de uma fantasia — seu modo particular de não permitir que a ausência o esmague.
Consciência-inconsciência, sanidade-insanidade, estes conceitos em pares lançam luz sobre os escombros narrativos e o luto ultrapassa a página, a tela, para adormecer em sono leve deste outro lado. Histórias de amor interrompidas, histórias de amor idealizadas — uma espécie de conforto, lugar de onde tirar coragem para não se deixar esmagar pela solidão, pela finitude humana.
O efêmero, o luto e a redenção perpassam ambas as histórias e é o outro, leitor/espectador, que completa o enigma, ou não: “Nós nos juntamos, nos afastamos e, por uma lógica imensa e incompreensível, formamos todos, com nossas vontades, parte do mecanismo da vida, sendo arrastados pela correnteza, deixando nos levar pelos acontecimentos, sendo inflexíveis.” (p. 113)
Quando um amor morre, o que resta de quem fica? A vida, implacável.
Desenho de Ariyoshi Kondo.
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O novo livro de Adriane Figueira está em pré-venda! Você pode adquirir cacos retidos na margem (Cachalote, 2024) na nossa loja virtual ou conferir os pacotes de recompensas na plataforma Benfeitoria.
Mais sobre a obra
“Eu nunca escrevi diários! Isto aqui é um extravasamento, um inventário estilhaçado, sem datas fixas no calendário, sem horários demarcados — guiado por Kairós”. Assim escreve no preâmbulo a autora de cacos retidos na margem, nomeando Kairós como preceptor de sua jornada entre a prosa e a poesia e, nesse simples ato, recusando a medida, a exatidão e a linearidade.
O tempo da palavra de Adriane Figueira é o do extravasamento. Os textos desse livro são desenhos sutis, quase oníricos, de um labirinto de memórias e vertigens que, solitário e vigilante, assoma como possibilidade de um contágio verbal que desoculta as tempestades da nossa experiência.